A pandemia escancarou as vulnerabilidades há séculos acumuladas no organismo nacional: a imensa desigualdade; a inexistência da infraestrutura de água e esgoto, coleta de lixo, pavimentação, iluminação nas vias dos assentamentos informais das favelas e periferias urbanas.
Veicularam-se na imprensa incontáveis reportagens, entrevistas e análises abordando as sedimentadas fragilidades. Mas, a origem de todo esse conjunto de mazelas ficou de lado: o histórico divórcio do Estado em relação à sociedade. O sintoma mais evidente do descasamento entre os governantes e o povo agora se revelou por inteiro no chão da realidade cotidiana dos 208 milhões de brasileiros. Ou seja: nos municípios. Ninguém mora na União e nos Estados. E, assim, decidiu-se no Supremo Tribunal Federal (STF) que a responsabilidade maior sobre a definição de protocolos - com vistas a se conter a expansão do coronavírus - é das prefeituras, em comum acordo com a sociedade.
Pois não há registro de que - ao menos em um dos 5,2 mil municípios brasileiros atingidos pela Covid - tenha ocorrido o indispensável diálogo entre os governantes e a sociedade. Na verdade, impuseram-se os protocolos nos gabinetes oficiais, de cima para baixo. Em nenhuma das cidades brasileiras formou-se a mesa redonda, com as partes interessadas de fato escrevendo os protocolos a várias mãos.
Os donos dos estabelecimentos conhecem como ninguém a rotina e os meandros dos seus negócios. Deveriam ter a primazia de apresentar suas ideias sobre o protocolo, que, na sequência, seriam analisadas pelos demais integrantes da mesa, entre os quais se destacam os epidemiologistas. A seguir viriam os ajustes.
Mas, não. O que imperou foi o solilóquio, o monólogo de um poder que é um quisto, desconectado, apartado, alheado da sociedade. Escuta? Nenhuma.
Empatia? Zero. Pois, então. É sobre esta egocêntrica base institucional das prefeituras que se ergue o cambaleante edifício da democracia brasileira. Sem dúvida, temos que refazer as fundações, robustecer os sustentáculos desta nação, que são os municípios, o chão da vida da gente.
Vem aí a eleição de novembro. O que assistimos nesta primeira metade do ano foi um espetáculo de horror, o incessante vaivém, o abre e fecha do comércio, o contrassenso de ônibus lotados e restaurantes lacrados, a austeridade de fachada que se seguiu ao liberô geral do carnaval, com os vírus espalhando-se
qual confetes e serpentinas. A alimentação fora do lar só não foi inteiramente para o ralo graças ao providencial socorro de Brasília (leia-se, Palácio do Planalto, Ministério da Economia, STF e Congresso Nacional), com a Medida Provisória dos Salários. Também foi (e tem sido) de extrema valia, neste desesperador ano de 2020, o apoio dos parceiros, os ‘stakeholders’ privados do mundo Abrasel. Alcançamos heroicas vitórias nas várias exaustivas frentes de batalha, tendo como causa maior a preservação dos milhões de negócios e empregos do setor.
Em contraste com a solidariedade do Planalto Central e dos parceiros privados, o que se sucedia nas reuniões encabeçadas pelos prefeitos eram cenas do desenlace, da incomunicabilidade, do descompasso, distanciamento e alheamento. Um iceberg. Mas, a gélida e silenciosa hostilidade emanada naqueles gabinetes aumentava a nossa indignação. O Estado existe para servir, e não para ser servido. Somos os geradores dos impostos e empregos. Não há emprego sem empregador.
Nessa atmosfera adversa, fortalecemos ainda mais as nossas convicções de que o Brasil precisa ser virado de baixo para cima. A voz dos donos e trabalhadores dos bares e restaurantes não foi ouvida. Será. Novembro vem aí.
*Paulo Solmucci é presidente-executivo da Abrasel