Por Danilo Viegas
Por que um bar caipira de esquina no castigado centro de São Paulo atrai multidões em filas de espera, tem um cardápio tão premiado e desfruta de prestígio em rankings mundiais?
A essa altura, provavelmente você já leu que A Casa do Porco, restaurante dos chefs Janaina e Jefferson Rueda no centro de São Paulo, foi eleito nesta semana o 12º melhor do mundo pelo 50 Best, premiação considerada o Oscar da gastronomia global.
O que talvez você não saiba é a identidade e a filosofia que permeiam todo o lugar e o tornam tão especial, mesmo sem ser necessariamente luxuoso. Aqui estão alguns avisos aos desavisados:
Resistência no centro da cidade
A Casa do Porco não está em um endereço considerado "nobre" em São Paulo: não está no Itaim Bibi, não está em Higienópolis, não está na Vila Madalena, nem em Pinheiros. A Casa está literalmente em um bar de esquina, em um prédio com pixações no castigado centro da cidade, na República, a poucos metros da Avenida Ipiranga.
E por quê? Para homenagear a região onde a chef Janaína Rueda nasceu, eles decidiram, em 2015, abrir o restaurante no centro de São Paulo com a intenção de criar um espaço democrático, oferecendo alta gastronomia ao público a preços acessíveis. Em parceria com artistas do centro de São Paulo, a Casa do Porco vem transformando o bairro, ajudando a torná-lo um pólo de criatividade, turismo, lazer e cultura. Hoje a casa já possui 'ramificações', como a Merenda da Cidade, Sorveteria do Centro, e Hot Pork.
É alta gastronomia, mas não é tão caro assim
O restaurante destaca preparos artesanais feitos com carne de porcos criados em um frigorífico dos Rueda e recentemente lançou um novo menu degustação. Batizado de "Somos de Carne e Osso", ele custa R$ 290 por pessoa e é uma sugestão para provar as principais receitas da casa. Por mais R$ 210, é possível harmonizar com drinques.
É caro pagar 22% de um salário mínimo (R$ 1.320) para ir a um restaurante? Talvez. Obviamente, é tudo relativo (ainda mais em um país com imensa desigualdade social). Os ingressos para o show da cantora Taylor Swift no Brasil, por exemplo, custam até R$ 1.090 (83% de um salário mínimo) e possuem mais de um milhão de pessoas na fila de espera.
"Ah, mas um show é uma experiência cultural, um acontecimento!" Sim, concordo. Mas por que ir a um restaurante premiado mundialmente também não pode ser? Gastronomia não é apenas alimentação, não é apenas emprego. Tem um peso importantíssimo na economia de qualquer sociedade: é cultura, é tradição, é origem e afeto.
Vale ressaltar o preço mais acessível do restaurante paulistano em relação às outras casas do ranking. No dinamarquês Geranium, eleito o melhor do mundo nessa mesma lista em 2022, o menu sem bebida custava US$ 440 (R$ 2.300). O Restaurante Central, em Lima (Peru), campeão de 2023, possui menus degustação que vão de R$ 655 a R$ 815.
Na A Casa do Porco, o menu é composto por oito etapas. Ele começa com uma seleção de embutidos artesanais, como fatias de copa, guanciale e lardo, acompanhados por crocantes de mandioca com porco assado e polenta com fígado suíno. Em seguida, um caminhão de brinquedo pequeno chega à mesa com versões em miniatura de sanduíches com mortadela, presunto e linguiça.
Uma novidade é o churrasco feito com porco caipira de mistura das raças Canastra e Moura. O corte é sempre servido com glacê defumada e salada de palmito pupunha. Outros pratos incluem tartare de porco com rabanete, ossobuco de porco com sopa de cebola e, de sobremesa, creme de mamão com caramelo e sorvete de jabuticaba. Ou seja, é uma gastronomia com raízes legitimamente brasileiras.
Respeito à gastronomia
Quer um exemplo de uso prático da famigerada sigla ESG? Na A Casa do Porco, as questões ambientais, sociais e de governança são levadas a sério em várias frentes. O restaurante busca não apenas desmistificar mitos e verdades sobre a carne de porco, mas também discutir a gastronomia brasileira, evidenciar o pequeno produtor, a agricultura orgânica, o olhar à cadeia produtiva e a preocupação com as questões ambientais, como as mudanças climáticas, e com o que será servido à mesa.
Os porcos, por exemplo, são de raças orgulhosamente brasileiras: Sorocaba, Piau, Canastra, Caruncho e Pereira. Criados no mais genuíno e familiar ambiente caipira, com alimentação natural de soro de leite e vegetais. Dentro da Casa do Porco, há um açougue, no qual são oferecidos cortes não usuais aos clientes. Do focinho ao rabo, utilizam o porco em todas as suas versões, sabores, cores e texturas. A utilização do animal por inteiro é uma forma de respeitar sua vida e sua morte, sem desperdícios.
A Casa do Porco tem uma produção interna: massas, pães, molhos, sobremesas, embutidos, tudo é feito na casa sem conservantes ou aditivos químicos. Há também apoio aos pequenos produtores. O que não é possível produzir internamente é comprado dos pequenos produtores, em sua maioria localizados no interior de São Paulo.
Talvez por esses pontos as pessoas se refiram ao local não apenas como um restaurante, mas quase como uma igreja, um culto, uma corrente filosófica. E tem gente que ainda acha que é possível inovar no setor de alimentação fora do lar servindo eternamente tábuas de filé com fritas. Sobreviver sim, avançar nem tanto.
Danilo Viegas é chefe de redação da revista Bares & Restaurantes e apresentador do podcast O Café e a Conta