Ao longo dos últimos 15 anos tenho estudado de maneira aprofundada as diversas teorias no Brasil e no exterior relacionadas à Responsabilidade Social Corporativa. Inclusive, minha tese de doutorado relacionou boicote do consumidor ao tema.
E, antes de você terminar de ler este texto, já informo que não existe uma fórmula que possa cravar uma atuação socialmente responsável para uma empresa (de qualquer segmento). Mas, refletir sobre as nossas ações no setor de Alimentos e Bebidas é primordial para que possamos reduzir a rotatividade de funcionários e as violências vividas por alguns deles.
Cada vez mais percebo que as reclamações de empresários do setor em relação à rotatividade de funcionários está relacionada sim à escassez de pessoas que querem trabalhar em bares e restaurantes. Todavia, essa escassez é potencializada pelas negligências com o ser humano no local de trabalho no setor.
Destaco que negligência é diferente de não atendimento da legislação trabalhista, das resoluções dos sindicatos e de quaisquer outras regulamentações do poder público. Negligenciar o funcionário é desconsiderar a pessoa como ser humano com suas limitações, desejos e afetos.
Quando discutimos responsabilidade social corporativa pensamos na cadeia como um todo e os diversos atores nela envolvidos.
Por isso, um escândalo de trabalho semiescravo na cadeia afeta uma empresa; transações financeiras que omitem impostos; lavagem de dinheiro; clima organizacional tóxico entre funcionários; relações abusivas de superiores; corrupção; ou, desrespeito a clientes que se encaixam em grupos minoritários.
Ser socialmente responsável é mais que atender a legislação: é respeitar e promover trocas justas, transparentes e honestas com os atores da cadeia.
Neste texto vou abordar especificamente a questão dos funcionários no setor de Alimentos e Bebidas para que possamos refletir sobre o que fazer para efetivar ambientes com maior orientação para responsabilidade social.
Há quem possa olhar o seguinte contexto de Roberto (nome fictício) como um problema meramente de Gestão de Pessoas; mas eu o encaro como uma miopia relacionada à responsabilidade social corporativa:
Roberto é um jovem de 25 anos que não terminou o Ensino Médio e ama cozinhar. Foi morar em uma capital para trabalhar com Gastronomia. Em um dos seus empregos temporários, recebendo um salário mínimo, foi contratado como auxiliar de cozinha. Ficou 17 dias sem equipamento de proteção individual completo (bota antiaderente) e folgaria toda quinta-feira da semana; começando sua jornada diária às 10 horas da manhã.
No decorrer das semanas suas folgas começaram a ser trocadas e a cada semana folgava em dias diferentes (não atendendo mais aquilo que havia sido combinado); seus horários de iniciar o trabalho mudaram de acordo com a folga de outros funcionários; e, assim, Roberto não conseguia ter uma rotina em que ele pudesse se planejar na vida pessoal e até profissional (voltar a estudar ou fazer algum curso de aperfeiçoamento).
Esse contexto de Roberto é sobre o gestor olhar para o próprio umbigo do negócio e desconsiderar que as pessoas têm vidas para além do trabalho. A palavra “vidas” aqui no plural é usada porque tem a vida afetiva, a familiar, a religiosa, a da saúde mental com a prática de esportes e o lazer.
Não podemos pensar, como gestores de bares e restaurantes, que nossos funcionários não têm vida para além do trabalho; e, assim, que eles definam suas vidas única e exclusivamente a partir das decisões que terceiros tomam por ele no trabalho. Adotamos uma postura egoísta ao agirmos desta forma. Em outras palavras, agimos em desacordo com a orientação para responsabilidade social.
Os funcionários sendo respeitados e cuidados acabam por fazer entregas eficientes. Se estamos em um lugar em que a gente se sente respeitado, não vamos pensar em sair de lá por uma proposta de R$ 100,00 a mais no salário; ou, pedir demissão e ficar desempregado até achar outro lugar para trabalhar.
Achar esse equilíbrio entre o lado do empresário e o lado do funcionário não é uma tarefa fácil. Por isso, sugiro a seguinte reflexão: e se fosse você, gestor, colocado nessa situação do funcionário, você se sentiria bem? Se sua resposta for “Não”, é hora de reavaliar sua conduta com sua equipe.
Identificar práticas socialmente responsáveis que vão para além do dever e das obrigações dos empregadores é uma tarefa difícil. Afinal, é a empresa ir além daquilo que é direito do funcionário e que está em convenções e legislação. É um plus que faz parte daquilo que os gestores acreditam para o bem estar dos funcionários na empresa.
Por isso é que eu trago como exemplo o Grupo Arpoador, no Rio de Janeiro (hotéis e restaurantes), como forma de evidenciar como a orientação para responsabilidade social corporativa está associada à cultura da empresa. E inclusão e diversidade não pode ser no papel; tem que ser na prática cotidiana.
Em 2022 tive meu primeiro contato com as lideranças de RH do Grupo Arpoador quando eu ainda atuava no TransGarçonne - um projeto para qualificar pessoas trans, travestis e não-bináries para a área de atendimento, cafés e bebidas na Gastronomia.
Como coordenador da Rede de Acolhimento para Empregabilidade TransGarçonne (RAET), fazia a ponte com o mercado em Gastronomia no Rio de Janeiro para que pessoas beneficiadas pelo projeto pudessem ser empregadas. E ali, felizmente, consegui identificar aspectos das minhas reflexões teóricas na prática cotidiana em relação à responsabilidade social corporativa no contato com as lideranças da empresa.
Esse ano, uma pessoa próxima foi contratada para um dos restaurantes do grupo em Ipanema como auxiliar de cozinha. Desde então, comecei a perguntar como era o dia a dia na empresa. Essa pessoa está na categoria do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e se encaixa como PCD (pessoa com deficiência) e tem acesso à Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (8.213/91).
Poderia ser apenas mais uma empresa que tem que empregar pessoas com deficiência - isso está na legislação e deve ser cumprido. Mas, nessas trocas com ele, percebo que o Grupo Arpoador propõe um ambiente saudável para este funcionário.
Dentre as muitas características do TEA em uma pessoa, a rotina é uma delas; bem como a dificuldade de olhar nos olhos e o contato físico por meio de toques e abraços. Nos três níveis de TEA, uma pessoa no nível 1 pode passar anos sem ter o diagnóstico por muitas vezes não ser lida como neurodivergente.
O ambiente que o Grupo Arpoador tem proporcionado a este funcionário tem sido diferenciado - é sobre inclusão na prática, como destaco a seguir a partir de uma conversa que tive com este funcionário:
“Eu acho que a equipe já sabia que eu era autista. Eu tenho até um padrinho lá - uma pessoa que eu recorro quando tenho alguma dúvida e que eu posso pedir ajuda. As pessoas lá parecem que têm mais paciência comigo. Outro dia eu falei para minha colega de trabalho que ela poderia ir almoçar porque ela estava grávida. Ela disse que não - que eu poderia ir porque eu tinha preferência (e apontou para o meu cordão)” - que o caracteriza como pessoa com TEA.
E ainda complementa: “Eu gosto de estar lá. Outro dia o chef passou por nós na cozinha e ouviu que conversávamos sobre Jiu Jitsu. Ele entrou na conversa e nos chamou para treinar com ele. Fomos nós três e o chef treinar dias depois. (João, 19 anos, auxiliar de cozinha do Quitéria)
O que pretendo trazer à reflexão neste texto sobre ações assertivas de Responsabilidade Social Corporativa é que não existe uma fórmula, pois cada ambiente é singular. A equipe ter sido preparada pelas lideranças de RH do Grupo Arpoador para receber um novo funcionário com diagnóstico de TEA evidencia a preocupação com o acolhimento e com a inclusão efetiva (e não somente no discurso).
Uma ação informal de convidá-lo para uma atividade de lazer fora do trabalho destaca a importância da inclusão pelos membros da equipe e pelas lideranças diretas. Ou seja, a receita é simples: mistura empatia com uma pitada de acolhimento; deixe no forno para até esquentar o coração e retire para ver os bons resultados.
As equipes sempre reagem às situações de acordo com os ambientes que lhes são propostos diariamente. E, eu bem sei que esse ambiente que eu considero socialmente responsável com um dos atores da cadeia (os funcionários) têm as mãos de Bárbara Rodrigues (gerente de RH do Grupo Arpoador) e de Camila Andrade (Especialista em RH da empresa). São elas que refletem, consolidam e implementam os valores organizacionais do grupo.
*Breno Cruz é professor efetivo do curso de Gastronomia da UFRJ, pós-doutor e pesquisador, criador do Festival Gastronomia Preta e do curso Pretonomia, avaliador da Forbes Under 30 e jurado do reality show Vida de Merendeira.