Artigo de Percival Maricato, sócio do Maricato Advogados e presidente da Abrasel em São Paulo
A nova Lei da Liberdade Econômica, nº 13.974, já em vigor, remove obstáculos burocráticos e dá mais segurança jurídica ao empreendedor , e com isso estimula atividades econômicas. Muitos de seus preceitos nada mais fazem que enfatizar outros já existentes na Constituição Federal , em especial nos artigos 170 e 174, que falam da liberdade econômica e da livre iniciativa, mas eram constantemente violentados pelo excesso de regulação do Estado. Trata a nova lei de normas inovadoras, muitas genéricas, outras dirigidas a pequenos empreendimentos. Vez que já está em vigor, e devido ao impacto imediato e transformador, é preciso abordá-las, começar discussões, tentar imprimir direção às interpretações por autoridades em geral e no convencimento da sociedade, via formadores de opinião.
O genérico e o específico
Há na lei normas genéricas, voltadas para o estimulo a atividade econômica, mas também algumas para situações específicas (empreendimentos de baixo risco, empresas “limitadas” de uma única pessoa, reformas trabalhistas pontuais…). Aponta para maior liberdade do empreendedor, mas também contém advertências e limites, confere responsabilidades. Ficam mantidas determinadas precauções, haverá fiscalização, não serão permitidas atividades que colocam em risco a integridade do consumidor, que perturbam o sossego público, que não respeitam legislações ambientais. Evitar que a liberdade descambe para a irresponsabilidade, que haja excesso de informalidade, é tarefa a que doravante devem se entregar lideranças e agentes econômicos. Se antes pecávamos pelo excesso de entraves, podemos estar entrando em fase de excesso de liberdade..
Excesso de liberdade pode levar a excesso de concorrência e informalidade
A lei permite abrir atividades de baixo risco sem obter-se licenças, alvarás. No caso dos bares e restaurantes (e lanchonetes , padarias etc) é bom esclarecer que isso ocorre quando a lotação não ultrapassa cem pessoas. Haverá novas normatizações. Há riscos. Lembremos que bares e restaurantes recebem públicos, consumidores, precisam de funcionários, lidam com alimentos. Inaceitável dispensar permanentemente a regularidade do imóvel (segurança das estruturas, zoneamento…) e no mínimo haverá fiscalizações rigorosas do corpo de bombeiros (extintores, saída de incêndio), trabalhistas (dependências de imprescindíveis aos trabalhadores), sobre os alimentos servidos (e riscos daí decorrentes)?
Quanto a segurança de público, lembremos da tragédia em uma casa noturna gaúcha. Pode-se dizer que nada aconteceria se a lotação fosse para cem pessoas? Há também interface entre o setor e o meio ambiente (infrações sonoras, uso de gás e consequências, resíduos sólidos…)
Por sua vez, persiste a necessidade de registro na junta comercial e nos fiscos municipal, estadual e federal. Como se iria saber do responsável pela empresa sem o registro? Trabalhar sem CNPJ? Certas regulações e a necessidade de fiscalizações passam a serem vistas pelo aspecto positivo: evitarão a explosão de concorrência selvagem (atenção os que andam falando que o liberou geral é bem-vindo), afinal, a liberdade irá servir também para os demais milhões de brasileiros. Pesquisas dizem que ¼ dos adultos gostariam de abrir negócios na área da alimentação fora do lar.
Proibição de maldades e enfrentamento de multas, bancos e serviços monopolizados
A lei veda edição de regras que afetem negativamente a “exploração da atividade econômica” ou prejudiquem a concorrência. Situações como a “criação de reservas de mercado” para favorecer determinado grupo ficam vetadas. Entendemos que a lei, nesse aspecto, sendo federal, se aplica de imediato, e permite questionar a validade de comandos, autos de infração e multas, legislações restritivas municipais e estaduais, até federais, de nível inferior (decretos, resoluções, portarias …).
Certamente haverá ainda, maiores possibilidades de o setor enfrentar abusos de bancos, cartões de créditos, empresas de vale refeição, de delivery. Da mesma forma se deve interpretar a determinação que pretende evitar a “criação de barreiras à entrada de competidores nacionais ou estrangeiros em um mercado”. Recomenda-se prudência apenas quanto a avaliar que a nova lei poderá se sobrepor a outras regulamentadoras federais, pois em quase todas as áreas temos agencias regulamentadoras (Anvisa, Ibama, etc.) e suas próprias legislações.
A lei e as convenções coletivas e contribuições “obrigatórias”
Logo em seguida, a lei veta “exigência de especificações técnicas desnecessárias para determinada atividade”. Esse comando atinge diretamente as normas tidas como fraudulentas das convenções coletivas de sindicatos quando exigem contribuições já proibidas por lei, mudando o nome das mesmas e criando artifícios para coagir empresas e trabalhadores ao pagá-las.
Nesse mesmo item temos ainda a proibição de “criação de demanda artificial ou forçada de produtos e serviços, inclusive cartórios, registros ou cadastros”. Note-se que com fundamento nessa prescrição, podemos enfrentar com mais segurança a questão da imposição obrigatória de nutricionistas, veterinários, pagamento a conselhos de administração e mais uma vez os sindicatos que exigem contribuições.
A lei na defesa do setor contra normas restritivas ou onerosas para a atividade
Logo a seguir a lei fala de proibir “barreiras à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades não proibidas por lei federal”, esta também interessantíssima. Convém usa-la para impedir restrições a atividades de bares e restaurantes advindas de determinações de câmara de vereadores, assembleias, prefeitos, governadores, burocratas em geral: fechar bares mais cedo, suspender o sal, substituir palitos por fio dental, permitir visita de clientes à cozinha, por cartazes de tudo quanto é tipo pelas paredes, fazer cardápio sem lactose, glucose, esta ou aquela produto alérgico, dar desconto para quem fez operações bariátricas, cobrar o mesmo preço de mulher e homem em casa noturna, etc., ou seja, contra o excesso, o abuso, a demagogia.
Essa determinação pode ser usada nos próximos dias para questionar projeto de lei da Assembleia paulista que proibe a venda de bebidas em terminais de ônibus e metroviários. Ou quem sabe a “proibição de venda de cigarros em padaria”, outra prescrição que acaba sendo inútil e, portanto, estúpida, pois estimula o contrabando e concorre para a perda de arrecadação. Certamente, do lado de fora do estabelecimento, o contrabando terá alguém com um tabuleiro oferecendo livremente cigarros paraguaios que entram em caminhões imensos pelas fronteiras, de forma suspeita.
Um food truck a cada esquina e outro no meio da quadra?
Atividades de baixo risco, portanto bares e restaurantes, para até 100 pessoas, poderão abrir sem alvará e só serem fiscalizados depois, se estão ou não de acordo com as regras de abertura e funcionamento. Food trucks também. O setor terá que apelar para as legislações municipais para impedir que haja um em cada esquina. O problema é se a lei municipal, que os limita, será suficiente para enfrentar a lei federal, que libera. Segundo o Dr Diogo Telles Akashi, constitucionalista e tributarista da ABRASEL, prevalece a primeira, pois está disciplinando uma questão de política de urbanização, de organização da cidade. Não se trata aqui de hierarquia de normas, mas sim de âmbitos de competência diferentes, tendo os municípios autorização para legislar sobre assuntos de interesse local, conforme art. 30, inciso I, da Constituição Federal. Mas então, pode ser que haverá problemas em dispensar alvará de funcionamento se burocracia resistir
Se food trucks, garagens, empresas para delivery de fundo de quintal, de sede virtual, forem liberadas, como ficarão os bares e restaurantes, que pagam aluguel, atendem fiscalizações, impostos, etc.? E se depois de aberto um negócio, a fiscalização decidir que ele não está sujeito às franquias da lei (e não está se fora do zoneamento, se em imóvel sem habite-se) ? Muito menos pode ser adaptado? O empresário perderá tudo que investiu? Perceba-se como é amplo o campo de interpretação e necessidade de discussão.
Desconsideração da pessoa jurídica e proteção do patrimônio pessoal.
Outra inovação bem-vinda é a exigência de que apenas com fraude, comprovada se poderá desconsiderar a pessoa jurídica e penhorar bens do sócio do negócio e nesse caso apenas dos que se beneficiaram do ato abusivo. Nessa orientação podemos dizer que muito contribuímos com artigos, palestras, reuniões, solicitações, às autoridades que elaboraram a lei, especialmente o Secretário Roberto Marinho. Ou seja, se o negócio não der certo pelos azares do mercado, ou até por imperícia do empreendedor, este não deverá perder mais que o capital investido. Para certos juízes bastava o empresário fechar as portas (até as vezes porque tinha sido despejado), para ser considerado culpado por “encerramento irregular da atividade” e responder com o que lhe restava do patrimônio, até o que tinha que receber como herança. É um comando positivo, será admitido na área fiscal e civil, mas deverá enfrentar obstáculos na Justiça do Trabalho.
Mudanças trabalhistas e sociedade de responsabilidade limitada unipessoal
Convém citar outras mudanças. Na área trabalhista o registro dos horários de entrada e saída do trabalho passam a ser obrigatórios somente para empresas com mais de 20 funcionários (antes o mínimo eram dez). E em querendo, o empresário pode convencionar com funcionários que ele só registre o trabalho fora do período normal. Cabe, no entanto, advertir que, aqui também, o empresário deve tomar cuidado em função de possíveis posicionamentos de parte dos magistrados da Justiça do Trabalho.
Por sua vez, haverá a carteira de trabalho eletrônico e a empresa terá cinco dias para registrar o novo funcionário e comunica-lo em até 48 horas. Neste item haverá problemas com empresas e trabalhadores que tem dificuldades de acesso a registros digitais, pois são muitos os que não têm ou não sabem lidar com sequer um celular. Esta possibilidade já foi regulamentada. A lei prevê também a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada. Ao contrário da EIRELI, não há limite mínimo de capital (na EIRELI é cem salários mínimos) e nem proibição de montar outras sociedades do mesmo tipo.
Um novo marco na interpretação do empreendedorismo pelo Estado
Pode-se dizer que enfatiza orientações princípiológicas da liberdade de empreender. Ao contrário do que vinha acontecendo desde as Ordenações Manuelinas, criadas pela cultura medieval, reduzirá o ativismo de membros dos três Poderes da República e dos três níveis: municipal, estadual e federal, o jorro de legislações burocráticas, calhordas, demagógicas, quase sempre restritivas e onerosas para os empreendimentos (e consequentemente para o consumidor).
A lei fala mesmo em responsabilizar o agente público irresponsável que emite normas sem avaliar antes as consequências sociais, jurídicas, principalmente as econômicas. Este terá que responder pelas consequências. Os juízes devem estar mais focados em resultados do que na pretensa finalidade aparente da norma. No futuro, sem dúvida, a nova lei ajudará a formar uma cultura mais propositiva, liberal, valorizando o empreendedor. Consta do texto que este deverá ser visto sempre como de boa fé, até prova em contrário, hipossuficiente em relação ao Estado. A orientação que tomará em casos onde ainda existe dúvidas interpretativas dependerá da ação das lideranças e formadores de opinião.
*Percival Maricato é sócio do Maricato Advogados e presidente da Abrasel em São Paulo